O conteúdo
suculento da carne pisoteada das mangas no quintal. A batucada ardida das
panelas amassadas. A histeria das crianças e o zumbido das moscas, o cão a
ronronar sua preguiça no chão de pedras canga. Ainda é possível encontrar
vestígios dos seres mágicos que abandonaram este cerrado, só as crianças podem
distinguir-lhes o odor no rastro. Daí que aconteceu o seguinte: os meninos
acordaram cedo. Era dia de são Cosme e Damião e este acontecimento espiritual
para os meninos do bairro significava bolo e suco. A macumbeira, bruxa gorda de
pernas roxas, da rua de baixo enfileirava a molecada em frente ao seu portão
rococó, de ferros retorcidos para formas florais. Servia bolo confeitado e suco
artificial, sabores roxo e vermelho. Os pivetes descalços se empurravam, a
macumbeira se sentava como uma rainha na boca do portão e com a ajuda das
filhas, igualmente macumbeiras, mas num estado de aprendizes, distribuía as
guloseimas enquanto entoava misteriosos cantos pela respiração. A filha mais
nova tratava de não permitir que nenhum espertalhão repetisse. Pois, para fins
rituais, era necessário que sobrasse boa parte do bolo para os santos infantes.
Como se naquele dia ela, a macumbeira, tivesse a obrigação de servir a dois
senhores, pois que não segredava sua opinião sobre as crianças, quando na hora
da novela saia aos berros expulsando a brincadeira: “parem de barulho seus demônios”. Mas naquele dia chegava a sorrir
para a meninada azeda de mijo, era o dia de se religar aos dois mundos que
sustentavam seu peso, era o dia da pacificação pelo impasse. Metade do bolo deu
para adoçar a manhã de vinte barrigudinhos. Ela se recolheu com o bolo e suas
filhas como a cabeça de uma tartaruga para seu casco de tijolos a se protegerem
de alguma ameaça. Aguardou até que o sol em ascensão dispersasse o tumulto.
Perto da hora do almoço se certificou do esvaziamento da rua. Disfarçou o bolo
com uma toalha estampada por bizarros hibiscos. Acompanhada pelas filhas
encaminhou-se ao mato que cercava o bairro, com o seu rebolar lento e hipnótico
cruzou o caminho seco. O sol ardia a poeira que
flutuava aumentando a desolação daquelas paragens. O cerrado era um trançado de
galhos finos e secos, o capim era uma bomba incendiaria prestes a explodir, o
vento fazia cirandar as folhagens amareladas espalhadas pelo cascalho; musicalidade
profunda que tudo engolia. A macumbeira depositou o que sobrou do bolo e do
suco, no miolo de uma touceira seca de capim, fez suas rezas de ofertar,
invocou são Cosme e Damião para cearem o banquete dos famintos.
No
dia seguinte voltou para se certificar se a oferenda fora aceita. Nada restava,
ela se ajoelhou grata pela gula dos santos. Os meninos riam logo ali, satisfeitos.
João Pede Feijão.
João Pede Feijão.
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