terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Uma fraqueza.

Piero Manzoni_Merda d'artista



Admiro com pesar os homens secundários. Chamo homens secundários aqueles que, como pássaros mães, mastigam pedras duríssimas e regurgitam gordurosa papa na boca de leitores debutantes. Conhecidos como críticos, comentadores, repetidores, todos esses leitores que dilatam os limites das grandes marteladas, chegando a fraqueza ultima da reverberação até que o silencio arremate o estrago. Essa gente entreviu como Moisés por uma fresta a perigosa figura de deus, o perigoso caos, mas por covardia, ou por amor a sei lá, ou porque simplesmente é impossível justificar nossas escolhas, resolveram dedicar sua vida em costurar telas de proteção, inventar vacinas, antidepressivos.... esses homens eu admiro. Não consigo chegar em publico e desqualificar essa casta de semi-desesperados. É como se dependêssemos deles para nos aproximar com cautela de gente perigosa como Nietzsche, Irigarai, Mozart, Tarcoviski, Rimbaud. Como se fossem minha garantia de retorno, minha coleção de Ariadnes enganadas. Tenho a impressão que o presente nos cunhou com excessiva covardia, de modo que me parece cada vez mais difícil ver surgir homens plenos de si; os que morrem muitas vezes. “Eu serei sempre o que não nasceu para isso”. O que isso faz de mim? Uma longínqua sombra, um conjunto de sensibilidades atrofiadas, um dependente e mais incompetente desesperado. Mas eu posso aprender, posso me tornar um legitimo repetidor, com publicações consideradas. Posso mergulhar na vida dos habitantes medievais e descrever os cheiros de vilarejos que jamais vi e verei, mas sou covarde demais pra respirar profundamente o odor dos córregos cadáveres da minha cidade, para encontrar ai razão verdadeira de desespero. Os barulhos, as expressões comuns são cada vez mais misteriosas enquanto mergulho em epopeias narradas por homens que morreram no fundo, no cerne dos abismos de seus tempos. Aprender nas estruturas, nas hierarquias primatas de nosso tempo nos transforma em nostálgicos e insensíveis, autômatos enciclopédicos, lamuriosos cagões. “a ciência serve para nos fazer trabalhar menos e comer mais”. “onde há gente há merda”. “nesta cidade não faltam banheiros”.

Em minha memória um quintal arde a merda, o cheiro mais indescritível que já senti.
Adocicado, cítrico, amargo e travoso. E uma sinfonia de moscas agora se levanta enquanto
um cão magro passa. Ah meus delírios. Minhas vergonhas. Minhas fraquezas.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012









O conteúdo suculento da carne pisoteada das mangas no quintal. A batucada ardida das panelas amassadas. A histeria das crianças e o zumbido das moscas, o cão a ronronar sua preguiça no chão de pedras canga. Ainda é possível encontrar vestígios dos seres mágicos que abandonaram este cerrado, só as crianças podem distinguir-lhes o odor no rastro. Daí que aconteceu o seguinte: os meninos acordaram cedo. Era dia de são Cosme e Damião e este acontecimento espiritual para os meninos do bairro significava bolo e suco. A macumbeira, bruxa gorda de pernas roxas, da rua de baixo enfileirava a molecada em frente ao seu portão rococó, de ferros retorcidos para formas florais. Servia bolo confeitado e suco artificial, sabores roxo e vermelho. Os pivetes descalços se empurravam, a macumbeira se sentava como uma rainha na boca do portão e com a ajuda das filhas, igualmente macumbeiras, mas num estado de aprendizes, distribuía as guloseimas enquanto entoava misteriosos cantos pela respiração. A filha mais nova tratava de não permitir que nenhum espertalhão repetisse. Pois, para fins rituais, era necessário que sobrasse boa parte do bolo para os santos infantes. Como se naquele dia ela, a macumbeira, tivesse a obrigação de servir a dois senhores, pois que não segredava sua opinião sobre as crianças, quando na hora da novela saia aos berros expulsando a brincadeira: “parem de barulho seus demônios”. Mas naquele dia chegava a sorrir para a meninada azeda de mijo, era o dia de se religar aos dois mundos que sustentavam seu peso, era o dia da pacificação pelo impasse. Metade do bolo deu para adoçar a manhã de vinte barrigudinhos. Ela se recolheu com o bolo e suas filhas como a cabeça de uma tartaruga para seu casco de tijolos a se protegerem de alguma ameaça. Aguardou até que o sol em ascensão dispersasse o tumulto. Perto da hora do almoço se certificou do esvaziamento da rua. Disfarçou o bolo com uma toalha estampada por bizarros hibiscos. Acompanhada pelas filhas encaminhou-se ao mato que cercava o bairro, com o seu rebolar lento e hipnótico cruzou o caminho seco. O sol ardia a poeira que flutuava aumentando a desolação daquelas paragens. O cerrado era um trançado de galhos finos e secos, o capim era uma bomba incendiaria prestes a explodir, o vento fazia cirandar as folhagens amareladas espalhadas pelo cascalho; musicalidade profunda que tudo engolia. A macumbeira depositou o que sobrou do bolo e do suco, no miolo de uma touceira seca de capim, fez suas rezas de ofertar, invocou são Cosme e Damião para cearem o banquete dos famintos.
            No dia seguinte voltou para se certificar se a oferenda fora aceita. Nada restava, ela se ajoelhou grata pela gula dos santos.  Os meninos riam logo ali, satisfeitos. 

João Pede Feijão.      

domingo, 15 de janeiro de 2012


BUTOH - TEATRO DANÇA

sábado, 14 de janeiro de 2012

Tenho a sede de quem nunca
bebeu...
Tenho
pedra canga como cama & na ramada
espojo meu cio, cadela
borrada, face de cera arreganhada p’ro sol...

amanhecida de leite, ardida por dentro, mergulhada no zero,
desmaiada no azul.

João Pede Feijão

CONTO


Tomo um remédio que me deixa feliz... e brocha. É um anti-depressivo muito comum. Um quimico que age de um jeito técnico e dificil na serotonina da minha cabeça. Não entendo direito porque me sinto tão feliz. Nenhum corpo me excita, nenhuma calçada muda o tom acinzentado, nenhum buraco de asfalto some, nenhum barulho de motor se cala... e ainda assim me rio das coisas como um idiota. Penso: "como estou atolado na merda" e mergulho numa gargalhada sem limite, de modo que as vezes me engasgo para um acesso de tosse comprida. Meu sono está leve, muito leve, os mosquitos nem conseguem se alimentar de mim em paz, para mim eles parecem helicópteros numa guerra e os contra ataco com tabefes. Durmo mal, mas acordo na hora com uma disposição que não sei se posso chamar disposição, é mais uma resignação, um ir sem vontade mas ir, por pura fatalidade.


sexta-feira, 18 de junho de 2010

SARAMAGO


O homem morreu. Certamente milhares de textos, noticias e homenagens se espalharão pela rede nos próximos dias. Especialistas, jornalistas, diletantes, até quem o conhece só de nome vai, de alguma forma, lamentar sua morte. Muitos dirão: "uma grande perda...". Eu prefiro não lamentar nada. Em vida Saramago produziu grandes coisas. Não falo do NOBEl, nem nada disso, mas de tempo literario... O tempo produzido, criado, inventado por Saramago foi resultado de uma grande vida. Os paragrafos imensos, o materialismo cruel, o sarcasmo jovial, a profundidade do sentido e da falta dele... tudo que o Saramago fez foi viver de olhos bem abertos. Agora na hora da sua morte amém.